segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Estabilidade e instabilidade monetária no desenvolvimento da Crise de 1929

In "Jornal de negócios online":

A atual crise da dívida nos EUA e na Europa não se resolve sem uma política inflacionista. As políticas colbertistas da China e a não regulação dos pagamentos internacionais deixam antever esse caminho.

Os episódios de estabilidade e instabilidade monetária no desenvolvimento da Crise de 29 conduzem a um resultado importante: o mau sistema monetário expulsa o bom da prática internacional. Resultado que deve ser tido em conta na análise da situação atual.


Em Setembro de 1985, Estados Unidos, França, República Federal da Alemanha, Japão e Reino Unido assinaram o Acordo de Plaza, pelo qual, no interesse da estabilidade, o dólar iria desvalorizar-se 51%, relativamente ao iene, de 1985 a 1987. Em Fevereiro de 1987 foi a vez do Acordo do Louvre ser assinado por aqueles países e ainda o Canadá (G6), por forma a terminar com a desvalorização do dólar relativamente ao iene e ao marco. O objetivo continuou a ser a estabilidade do sistema de pagamentos internacionais. A entrada do Japão no período das "décadas perdidas", 1991-2000 e 2001-2010, e a criação do euro em Janeiro de 1999 levaram a um período de grande bonança no sistema de pagamentos internacional. Mas enquanto tivermos países com as suas próprias moedas os problemas de estabilidade e de bem-estar dos povos colocar-se-á sempre.


Nos primeiros anos da grande depressão de 1929, assistimos a uma divisão entre os que defendiam a todo o custo a estabilidade do valor das moedas e os que optaram pelo abandono dessa estabilidade. Os primeiros mantiveram-se fieis ao padrão-ouro, enquanto que os segundos optaram por desvalorizar, a sua moeda. O padrão-ouro pode ter sido responsável por um acentuar da gravidade da crise de 1929.


A Austrália, a primeira a abandonar o padrão-ouro em 1930, fez de imediato uma desvalorização de 40%. A Nova Zelândia e o Japão seguiram-se, em 1931 e até 1933 eram já 9 os países que haviam abandonado o padrão-ouro. Os EUA desvalorizam a sua moeda em 41% em 1934. Estas economias retomaram a recuperação económica em seguida às desvalorizações: permitiram a redução dos preços internacionais da produção desses países, as exportações aumentavam enquanto as importações diminuíam e o emprego aumentava em consequência.
E que se passava no grupo da estabilidade monetária? Os que se mantiveram fieis àquele padrão formaram o bloco-ouro em Julho de 1933. Para a França, a Bélgica, a Holanda, a Suíça e a Polónia o acordo de Paris de 8 de julho destinava-se a "impedir o caos monetário na Europa".


A primeira metade de 1933 não correu mal a este grupo em termos da recuperação económica. Sobretudo porque ganharam credibilidade em termos de estabilidade das taxas de câmbio, eliminado a especulação sobre as suas moedas. Na segunda metade as coisas começaram a correr mal: o comércio dentro do próprio grupo caía, chegando a cair 40% entre 1933 e 1934. Desemprego, crise bancária agravada e elevadas perdas de ouro ainda levaram a controles cambiais, mas em Março de 1935, a Bélgica e o Luxemburgo desvalorizam as suas moeda e saíram do bloco-ouro. Em Setembro de 1936, França, Holanda e Suíça aboliram o padrão-ouro e em Outubro, França e Itália desvalorizavam as suas moedas. O bloco da estabilidade monetária via o seu fim sem glória ou proveito, afundado em desemprego e com reservas internacionais debilitadas.


Em França, o país principal do bloco, a esquerda não era favorável à desvalorização da moeda apesar da perda de competitividade que resultava da valorização da sua moeda. A ideia de desvalorização apenas surge em reação ao anunciado controlo cambial protagonizado pela Frente Popular e aos aumentos salariais e benefícios sociais dos acordos de Matignon de 7 de junho: aumento de salários de 7% a 15% e semana de trabalho reduzida a 40 horas, para além de outros benefícios, como as duas semanas de férias pagas. Política por demais incoerente: aumentar custos quando os preços internacionais em dólares não paravam de subir! O bloco da estabilidade monetária via o seu fim sem glória afundado em desemprego e com reservas internacionais debilitadas.


Qual a moral desta história? A estabilidade monetária de curto prazo pode afetar negativamente o bem-estar, através de uma espécie de lei de Gresham aplicada a sistemas monetários: o mau sistema expulsa o bom da prática internacional. Nos dois próximos artigos falaremos da ação dos mecanismos naturais e de uma possível guerra de moedas.

Nota: A segunda parte deste artigo será publicada na próxima edição do Jornal de negócios, dia 2 de Novembro. Este artigo foi redigido segundo o novo Acordo Ortográfico.
Autor:  João Sousa Andrade. Professor de economia catedrático na Universidade de Coimbra

 

Segunda parte:

In "Jornal de negócios online":

Nas populações de seres vivos existem mecanismos naturais, reguladores, que permitem a sua reprodução. A influência externa afeta a auto-regulação. Nos grupos humanos, os mecanismos naturais são muitas vezes substituídos pela intervenção consciente e intencional dos indivíduos e das instituições.


A intervenção de política pode ser ilustrada pela situação dos EUA na década de oitenta do século XX. Na primeira metade dos anos oitenta dá-se uma subida da taxa de câmbio do dólar. O presidente do Fed, Paul Volcker, conseguiu reduzir a elevada inflação, mas provocou uma subida sustentada do dólar. O resultado de uma inflação controlada pela subida da taxa de juro seria a subida do dólar que provocaria a redução das exportações e o aumento das importações. O aumento do défice externo conduziria a um crescimento fraco ou negativo. Os EUA, como pagam a outros com a sua moeda, aumentariam os créditos bancários para pagar as suas importações. Com ausência de crescimento e excesso de moeda o dólar desvalorizar-se-ia. Mas este processo seria muito lento com o desemprego a aumentar progressivamente. O Acordo do Plaza (setembro de 1985) entre as principais economias permitiu que por ação concertada de vendas de dólares este desvalorizasse face ao iene de 51% de 1985 a 1987.


Na pura lógica dos mecanismos de ajustamento cambiais tudo se passa da seguinte forma: a moeda de um país valoriza-se em face das restantes: as exportações vão diminuir e as importações aumentar gerando um défice em termos de posse das outras moedas. Essa necessidade de moedas externas levará ao aumento do valor destas, ou seja, a desvalorização da primeira ou ainda, a redução dos preços desta economia – como estes se reduzem pode-se exportar mais e importar menos. Vejamos de perto duas situações diferentes. Na primeira o país faz tudo para não desvalorizar e na segunda desvaloriza. O país com moeda sobrevalorizada, com as mesmas unidades monetárias compra agora um adicional de bens no exterior, e por isso reduz a sua poupança, aumenta as suas compras ao exterior reduzindo as internas. A inflação interna reduz-se: dez unidades monetárias passariam a comprar sabonete e meio e não apenas um produzido nos EUA. Os exportadores encontram agora dificuldades em exportar e os produtores nacionais vendem agora menos no mercado interno. O emprego não aumenta, diminui mesmo, não se fazem novos investimentos para produzir para o mercado e pode-se ir vivendo sem dores de cabeça se alguém for emprestando dinheiro para consumir. Ausência de crescimento, o aumento do desemprego e da dívida interna e externa são a consequência. Os custos com a dívida serão cada vez mais elevados e terá de ser feita a alienação de ativos ao exterior. O desemprego forçará à queda dos salários reduzindo-se assim os custos e finalmente, ao fim de algum tempo, os preços internos aproximam-se dos internacionais. No segundo caso, o país pode, pura e simplesmente desvalorizar. Não sendo obrigado a ter um câmbio fixo, pode reduzir as taxas de juro e comprar moeda estrangeira fazendo descer o preço da sua própria moeda. Se for um país dominante até pode acordar com outros a desvalorização da sua moeda.


Como a sociedade não aceita o funcionamento daqueles mecanismos naturais, do primeiro caso, as políticas cambiais fazem sentido. Pensemos em Portugal. Se uma economia não pode alterar a taxa de câmbio, que fazer? Aceitar aquele mecanismo natural? Fazer políticas que reduzam os custos de uma forma semelhante à desvalorização é impossível: a subida do IVA não torna mais barata a produção interna, exercendo mesmo pressão para que seja mais cara. E afinal somos hoje confrontados com a necessidade de fazer políticas equivalentes. Se não puder tomar remédios para a gripe protejo-me do frio e da chuva. Que nos aconteceu? As nossas políticas económicas, desde a segunda metade dos oitenta não respeitaram o facto de não virmos a dispor da liberdade de desvalorizar. Valorizámos a nossa moeda, facilitámos as importações e dificultámos as exportações e através de baixas taxas de juro, não parámos de aumentar o nosso consumo - vivemos como ricos. E agora temos de respeitar os compromissos com os credores e indignamo-nos quando nos apelidam de maus devedores. Alguns de nós chegam mesmo a sugerir que outros paguem o que nós gastámos. No próximo artigo finalizaremos com a possível guerra das moedas.


Nota: A terceira e ultima parte deste artigo será publicada na edição de amanhã, 3 de Novembro. Artigo escrito foi redigido segundo o novo Acordo Ortográfico.
Autor:  João Sousa Andrade. Professor de economia catedrático na Universidade de Coimbra

 

Terceira parte :

In "Jornal de negócios online":

Olhando para o mundo atual vemos uma área económica, a União Europeia, que dá primazia absoluta à estabilidade da sua moeda, e um mundo, dos Estados Unidos à China, onde o valor da moeda é gerido com objetivos de emprego ou de crescimento de reservas internacionais. Olhando para um passado não muito distante (anos 30) teríamos a UE no "bloco ouro", com o seu euro, e as restantes naquilo que foi o "bloco dólar". Quem se afundou na altura? O bloco da estabilidade. Quem viu as suas economias a crescer? O "bloco dólar".


A taxa de câmbio pode ser alterada para reduzir equilíbrios, mas também pode ser manipulada para aumentar as exportações e reduzir as importações criando condições para o crescimento das economias que a manipulam. Estão neste caso as economias que dão primazia ao emprego e as economias que seguem princípios colbertistas. Se para as primeiras o objetivo será o bem-estar, para as segundas já se trata de obter o poder que deriva da acumulação de reservas de moedas internacionais.


Mas podem as economias desvalorizar ou não permitir a valorização das suas moedas? Não serão essas medidas idênticas a medidas protecionistas? E não estão estas proibidas? A Organização Mundial do Comércio zela pelo respeito da liberdade de comércio. Um país não pode proibir as importações de um outro para proteger a sua produção. Foi assim que, com a entrada da China na OMC, a produção têxtil, da Malásia e Indonésia à Itália e Portugal, se viu terrivelmente afetada. Mas se os decisores de política nada podem fazer para "proteger" a produção do seu país, podem provocar a desvalorização da sua moeda e assim baixar o preço das suas exportações e subir o das importações. Esta prática não é protecionista? Obviamente que é! Neste caso a OMC não tem nada a ver com o assunto.


E o FMI? Desde o final dos anos setenta, com o abandono das taxas de câmbio fixas, que vigoraram de 1945 a 1973, o FMI perdeu o seu poder sobre a fixação das taxas de câmbio. Quer isto dizer que os decisores de política não podem proteger a produção do seu país, através de impostos sobre as importações ou subsídios à exportação, mas podem provocar a redução da taxa de câmbio do seu país conduzindo ao mesmo? É essa a realidade desde há alguns anos nas trocas internacionais. A China, com a sua prática colbertista, acumula reservas sem cessar e aumenta o seu poder sobre o sistema internacional de pagamentos. O imperialismo do passado era acompanhado com condições de vida muito superiores às dos restantes países. Não é o caso da China. Incapazes os restantes países de impor salários mais elevados na China, é esta economia que "exporta" a redução dos salários e do nível de vida dos trabalhadores. O novo império nasce, não da supremacia tecnológica, mas da miséria dos seus trabalhadores e de uma prática de não valorização da sua moeda. Esta prática chinesa levou o FMI a aceitar que outros países, por razões embora diferentes, protejam as suas moedas da valorização. Não se trata do FMI passar a ser menos ortodoxo, mas de minimizar os custos da impotência de regulação do sistema internacional de pagamentos. No fundo, é um paliativo. A única voz que por agora se faz ouvir é a do Brasil: é necessário impedir desvalorizações comerciais e financeiras competitivas. Esta posição é interessante, porque respeita à China e aos EUA.


Nota: Este é o último de três artigos do autor publicados pelo Negócios. O texto foi redigido segundo as regras do novo acordo ortográfico.
Autor:  João Sousa Andrade. Professor de economia catedrático na Universidade de Coimbra

 
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