quarta-feira, 27 de abril de 2011

Dívida Soberana

In “Económico.Fórum”:

O que é uma reestruturação da dívida soberana?
A reestruturação da dívida soberana tem estado na ribalta em virtude dos "rumores" de que poderá ocorrer na Grécia. O economista Ricardo Cabral (Universidade da Madeira) responde a 10 perguntas


Jorge Nascimento Rodrigues (www.expresso.pt)
10:18 Terça feira, 26 de abril de 2011   
http://aeiou.expresso.pt/o-que-e-uma-reestruturacao-da-divida-soberana=f645359


1 - O que é uma reestruturação de dívida?
É uma renegociação com redução do valor presente (ou atual) da dívida. Tipicamente está associada a um evento de incumprimento formal (vulgo, bancarrota, no inglês default). Um evento de incumprimento formal pode, por exemplo, consistir numa moratória, ou mesmo num atraso excessivo no pagamento de juros ou capital em dívida. Ocasionalmente, ambas as partes podem concordar em reestruturar a dívida sem que ocorra um evento formal de incumprimento.


2-      Quando é que as agências de rating consideram que se está diante de uma bancarrota?
As agências de notação consideram que a reestruturação é um evento de incumprimento se a participação na reestruturação de dívida não for um acto voluntário por parte dos credores.


3-      Que modalidades de reestruturação existem?
Uma redução do valor presente da dívida consegue-se de várias formas (que podem ser utilizadas em combinação):
·        a)  diminuindo o valor facial do montante em dívida (i.e., uma obrigação com valor facial de €1000 passa a ter um valor facial de €800);
·        b)  reduzindo o cupão da obrigação que resulta numa redução da taxa de juro em relação ao montante em dívida (por exemplo, para uma obrigação com valor facial de €1000 uma redução do cupão anual de €50 para €40, significaria uma redução da taxa de juro paga pelo devedor de 5% para 4%);
·        c)  aumentando a maturidade da dívida (e.g., uma obrigação que vencia em 2016 passaria a vencer em 2031 - como o valor facial em dívida só terá de ser pago muito mais tarde o valor presente da dívida diminui substancialmente).


4-      Um país devedor fica a ganhar com uma reestruturação?
A reestruturação ocorre quando o país devedor já não é capaz de pagar essa dívida - isto é, numa situação limite. O país devedor ganha em enfrentar a realidade e resolver uma situação insustentável. Contudo, associados a essa decisão, existem custos significativos de reputação e aumento dos custos de financiamento nos mercados internacionais. Além disso, a reestruturação deve ser bem dimensionada e bem conduzida. Primeiro, a reestruturação de dívida deve ser suficientemente significativa de forma a tornar a dinâmica de dívida sustentável. Segundo, deve ser uma reestruturação bem planeada e negociada com os credores, de forma a não prejudicar em demasia a actividade económica doméstica. Nomeadamente, devem ser assegurados os mecanismos de financiamento das importações de bens mais prioritários para o país (e.g., energia, alimentos, matéria prima para empresas exportadoras).


5-      O que pode acontecer se a reestruturação de dívida for mal gerida?
Uma reestruturação de dívida demasiado pequena pode resultar em reincidência da crise de dívida e nova reestruturação de dívida passados poucos anos. Uma reestruturação de dívida mal conduzida pode resultar numa crise grave do sistema financeiro, em crise económica profunda e ainda em litígios que se arrastam em tribunais internacionais por vários anos, restringindo o acesso a crédito nos mercados financeiros internacionais e dificultando o processo de ajustamento externo.


6-      O que é um "corte de cabelo" (hair-cut na designação anglo-saxónica)?
É a percentagem da redução do valor presente da dívida, que pode ser medido seguindo diferentes metodologias. Por exemplo, suponha-se que o valor facial de uma série de obrigações do tesouro que vence daqui a 5 anos (em 2016) é, através da reestruturação, reduzido em 20% de €1000 para €800 e o valor do cupão reduzido em 20% (de, por exemplo, €50 para €40), mantendo-se a data de maturidade dessa série de obrigações. Assuma-se ainda que a taxa de juro de mercado aplicável a obrigações similares (i.e., a taxa de desconto) é 5%. Nessas condições, a reestruturação de dívida reduz o valor presente dessa série de obrigações em 20%, ou seja, o haircut é de 20%. Este 'corte de cabelo' desce se o cupão se mantiver e aumenta se se alarga a maturidade da dívida. Por exemplo, se se mantiver o cupão e o valor facial originais, mas a maturidade dessa série de obrigações do tesouro passar de 5 para 20 anos (passando a taxa de desconto a ser, por exemplo, 7%), o haircut passaria a ser de 21,2%. 


7-      Quem são os principais prejudicados?
Os credores e os mercados financeiros que não gostam desse tipo de incerteza.


8-      Os contribuintes do país em dívida são lesados ou beneficiados?
Numa situação limite, com juros elevados e dívida a crescer exponencialmente devido ao juro composto, os contribuintes saem beneficiados em resolver, através da reestruturação, uma trajetória de dívida claramente insustentável. Contudo, as ressalvas acima identificadas (dimensão e condução do processo de reestruturação) são também relevantes nesta questão.


9-      É eticamente aceitável?
O capitalismo tem, na sua génese, a tomada de risco e em consequência a possibilidade de insucesso. No caso de iniciativas empresariais esse insucesso pode-se traduzir em processos de saneamento ou falência, que geralmente resultam na reestruturação de dívida dos credores da empresa. Ou seja, o processo de reestruturação de dívida é intrínseco a economias de mercado. Além desse exemplo note-se que, em economias de mercado, os bancos regularmente reestruturam os créditos que detêm sobre empresas e famílias em dificuldade. De facto, os bancos (e outras empresas) incluem na sua demonstração de resultados uma previsão das imparidades, que não é mais do que uma previsão dos hair-cuts que irão sofrer quando reestruturam a dívida dos seus clientes. É parte do dia-a-dia do negócio bancário.


10-   Se o país se refinanciar através do FEEF/FMI, fica mais difícil ou mais fácil reestruturar a dívida soberana?
A dívida contraída junto do Fundo Monetário Internacional (FMI) tem senioridade (i.e., prioridade de pagamento no caso de incumprimento) em relação à dívida soberana portuguesa. O pacote de resgate com o FEEF (Fundo Europeu de Estabilização Financeira) irá traduzir-se num chamado Loan Agreement. Contudo é de esperar que a lei e foro jurídico aplicável a esse contrato de empréstimo seja internacional (e.g., Londres, praça onde são realizados muitos contratos financeiros). Em consequência, embora os empréstimos do FEEF não tenham em teoria senioridade em relação à divida soberana portuguesa, na prática, terão essa senioridade devido ao efeito na lei e foro jurídico aplicável, com os impactos negativos consequentes. Em suma, o resgate do FEEF/FMI torna, de facto, muito mais difícil e complexa, no futuro, em caso de necessidade, uma reestruturação de dívida do estado português.

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